quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Os injustiçados de GutAzar !

Lisboa, segunda-feira, 15 de Setembro de 2003


Capítulo I:
Sinais


Nesta manhã de Outono, a capital da Lusilândia parecia uma cidade fantasma, abandonada no meio do deserto, depois de uma explosão nuclear: as ruas permaneciam mudas e abstractas, mas os transeuntes caminhavam desfigurados; os cafés abriam para cumprir um ritual, porque só as moscas ousavam aí entrar; o comboio das oito ficou paralisado no meio do tabuleiro da Ponte, impondo aos operários da margem sul umas horas de repouso absoluto; os passageiros dos cacilheiros encalhados em pleno Tejo permaneciam estoicamente de pé, abúlicos, a mirar resignadamente para o mar alto, à espera que alguém os viesse rebocar e quando, assustadas por um trovão caído do infinito, as gaivotas emudeceram o seu lamurioso pipilar, os rádios de bolso deixaram de funcionar e pelo ar ecoou um grito tão lancinante que toda a gente pensou que viesse dele próprio, tamanha era a raiva interior. De repente, um raio tenebroso irrompeu estrondosamente do fundo do mar e, rodopiando vertiginosamente em redor do Cristo-Rei Almada, abateu-se sobre ele, quebrando-lhe os braços em mil pedaços, como predissera o cavaleiro negro.
— Adeus, mãe! Adeus, pai! Adeus, amor! Adeus, filho! Adeus, Maria! Adeus, Zé! Adeus, mundo cruel! — gritavam freneticamente as dezenas de vultos que, despenhando-se desesperadamente do alto da quadragenária Ponte Salazar, usurpada ao professor e rebaptizada 25 de Abril pelos heréticos adeptos da ditadura do proletariado, trinta anos antes, iam mergulhando e fazendo do rio a última morada.
— Ai Jesus, é o fim do mundo! — exclamou uma velhota que sofria das cataratas, cruzando as mãos e erguendo os olhos ao céu.
— Hoje, morremos todos! — berrou o mestre da lancha, agarrando-se à barra.
— Salvai a meu gatinho, meu Deus! — implorou uma criança.
— Porque temeis, homens de pouca Fé? — perguntou uma voz límpida, ecoando dos confins do Infinito.
— Ele bem que nos avisou! — recordou um garoto de olhos esbugalhados.
— Será mesmo verdade que as almas do outro mundo virão vingar-se do mal que lhes fizemos durante estes anos todos? — volveu uma senhora idosa, franzindo a testa duvidosa e abjurando satanás com uma cruz feita à pressa..
— Graças a Deus, a luz voltou! O motor já funciona! Oh! O barco pôs-se a andar sozinho! — constatou incrédulo o homem do leme.
— Olhai lá para cima! Oh! O combóio já se foi! — adiantou um garoto, apontando admirado para o tabuleiro da Ponte.
Inundados subitamente por um clarão reluzente, que quase os cegou, os passageiros deitaram instintivamente as mãos aos olhos para protegerem as retinas e calaram-se, deixando-se guiar pelo vulto branco que segurava o leme da lancha. Atracando no lugar que lhe estava reservado no cais, o navio imobilizou-se e as pessoas, seguindo cada uma para o seu laborioso destino, dispersaram-se pelas ruas da cidade, como se nada tivesse acontecido. Porém; mirando distraidamente as bancas e os quiosques, foram descobrindo os seus retratos nas primeiras páginas dos jornais. E em cada imagem reluzia enigmaticamente uma palavra mais cintilantes que as estrelas do céu ou as fascinantes luzes de néon que inundam Pigalle em Paris, onde tudo se vende sem nexo e cheira a sexo.
Perplexos, alguns pararam para comprar o jornal, mas a legenda desapareceu, deixando sangue no seu lugar; outros, tentando fugir, sentiram uma ventania tão forte que os fez parar e colar à calçada, enquanto as folhas do jornal se lhes cravavam nas costas, nas pernas e no rosto, obrigando-os a estancar a cobarde debandada e a confessar o crime que vinha escarrapachado na fotografia de cada um deles, como se ninguém se pudesse furtar ao julgamento divino. Um quarentão ainda quis fugir, mas foi esmagado por um camião; uma batina negra também tentou escapar-se à vindicta divina, mas em vão: caiu fulminada dentro do caixão. E uma vozearia infernal eclodiu pela cidade, como jurado pelo Artur, o menino vindo do passado, para quem o futuro não era segredo, porque para ele, coração puro e inocente, nunca existira a palavra medo e o tempo sempre fora um eterno presente. E a normalidade só voltou, quando as bancas e os quiosques, esvaziadas dos últimos jornais, viram um silêncio sagrado lacrar as gargantas por onde ecoavam os gritos, os suspiros e os ais. E nunca as sete colinas de Lisboa pareceram tanto um monte de vendavais! Nem mesmo quando os arautos da santa inquisição puseram a Madragoa e a Mouraria a fogo e sangue, nem tampouco naqueles desolados dias em que Portugal, julgando-se Rei e Senhor do Mundo, por obra dos seus audazes marinheiros saloios, transmontanos ou raianos, que, mesmo não sabendo navegar, ousaram afrontar o Adamastor em alto mar, se apercebeu dos injustiçados da Gesta Marítima e fundou as Misericórdias para esconder o Reino da miséria.
Ao meio-dia, nos restaurantes e nos snacks, as pessoas encomendavam de que matar a fome, pagavam e sentavam-se, mas limitavam-se a contemplar a refeição como se ela estivesse envenenada ou a fome tivesse sumido das suas panças empanturradas. E, erguendo-se apáticas, iam deitar a comida intacta no lixo, sem protestar e felizes, como se olhar para ela bastasse para lhes satisfazer a necessidade. Quem se revoltou contra esta ditadura intestina e quis comer, ignorando e desprezando a voz da sua consciência, passou o dia a engolir e a mastigar desesperadamente tudo o que havia sido atirado ao caixote e, inexplicavelmente, quanto mais comia, maior era o larote que sentia!
Depois, na hora do regresso a casa, quem ousou mudar de direcção viu-se brutalmente manietado por braços invisíveis e forçado a cumprir religiosamente o trajecto rotineiro, embarcando no mesmo maldito cacilheiro onde viajara pela manhã. Foi então que, abstraindo-se por um ápice à realidade virtual em que vivia, o povo se apercebeu que, comprado pelo dinheiro, há muito que perdera a Liberdade! E cada rosto desfigurado, corando de vergonha, quis esconder os remorsos e agarrar a sua máscara com ambas as mãos, mas ela caiu-lhes ensanguentada aos pés, fulminando a terra, a madeira ou mesmo o ferro que lhes servia de chão. É que, à força de a rejeitar e a desprezar com a abstenção, os cidadãos haviam-na renegado do coração, substituindo-a pela ditadura cor-de-rosa, que, tal vampiro insaciável, acabara por lhes petrificar a alma piedosa que era a deles, antes de sucumbir à lengalenga do Pantomineiro e ao deus Dinheiro.
À noite, ligando a televisão para assistir a " O ORGULHO DA NAÇÃO ", a novela que a televisão SPQFR — Só Para Quem For Rosa — servia incansavelmente aos boys e call-girls do regime, cada renegado viu escarrapachado à sua frente o filme daquele maldito dia e, querendo mudar de canal para ver outra coisa, foi descobrindo estupefacto as histórias do pai, do irmão, do colega de trabalho ou do vizinho, até que, cansado de tanto carregar no telecomando, parou e viu o vidro do ecrã derreter-se e escorrer pelo sobrado, emanando uma pestilência insuportável se espalhou pela casa, forçando-o a correr para a janela. E até ao romper da aurora, as persianas da cidade não se cansaram de subir e descer, num rangido demencial que sugeriu a cada um os gritos desesperados de quem, passado o Julgamento Final, sentia o demónio arrastá-lo para a incandescente fornalha Infernal.
Deste incidente, porém, nada foi noticiado, como se de um quimérico sigilo ou de um segredo de Estado se tratasse. Nem jornais, nem rádio, nem televisão, nem ninguém ousou contar ou comentar o sucedido, por só a cada um dizer respeito. É que a lei do silêncio, tão em voga no tempo do ditador Salerres, há muito que imperava nos súbditos de sua majestade Gutazar, que à força de uma refinada léria e muita água benta, que era coisa que não faltava, sobretudo depois que um messiânico arauto do senhor Jabá recebera inopinadamente no seu confessionário a visita do espírito Santo de Orelha, que o aconselhara a benzer a reserva do Alqueva, donde saíam diariamente dezenas de tanques do sagrado líquido para acudir às desgraças que os soldados do rei iam semeando impunemente por toda a parte, porque era esse o verdadeiro engenho deles e a sua única arte!
No longínquo 1 de Abril de 1999, um ingénuo filho da diáspora, emigrado no Burgulândia, para esconjurar a fatídico sonho da véspera, bem que avisara o mundo do perigoso vírus rosae que, se a abstenção ajudasse, em 13 de Junho inocularia na democracia a ADN da Ditadura que eclodiria inevitavelmente em 10 de Outubro, graças à indiferença dos emigrantes, a quem as balelas do secretário Morgado deram volta à mioleira, sob o beneplácito da T.L.I — Télélusilândia Internacional. E a maioria absoluta, tão desejada pela corja execrável dos cancros da nação, a quem o engenhocas da carnificina oriental dera a mão, pelo menos, quedou-se cinicamente na relatividade para que a ditadura continuasse a lapidar a pátria com toda a legitimidade e na mais perfeita impunidade. Depois, em Setembro do mesmo ano, quando a incúria d’El Gutazar, o homem que tudo fazia, mas devagar, devagarinho, quase acabou com a raça Mauberorum Lorosae, fazendo surgir naquela cristianíssima terra o espectro da desolação final, o Luís Ninguém transformou a sua pena num alfange insaciável, combatendo os assassinos de Alá e os seus aliados de circunstância, mas as suas palavras e os seus gritos desesperados caíram em saco roto, porque naqueles dias a Lusilândia, manipulada pelos mentores do dictat cor-de-rosa, andava totalmente obcecada por Timor e de nada valia invectivar ou responsabilizar a classe política, e muito menos o Primeiro, homem de palavras muitas e sábias, mas obras poucas e loucas, a quem o povo néscio queria como deus, porque dele dependia o job dos filhos ou de enteados seus. E sinistro era a palavra que melhor rimava com ministro, in illo tempore!
Ah! Que raiva! Que dor! E que sede de justiça que em mim se atiça e me faz odiar a sacrossanta impunidade que fez do meu país o Anticristo da Liberdade!!!
Hoje, quatro anos passados, Gutazar, o linguareiro, mudara de nome para fugir à ira divina, que o confundia com Euricus, Inndonésius Sicárius, apesar das fervorosas preces do seu acólito messiânico, que no Paraíso não cessava de interceder pelo seu protector terreno, implorando ao Omnipotente que olhasse e julgasse apenas o que disse e não que o fez, porque, se as coisas correram mal, ao demónio se deviam tais infortúnios. Porém Deus, farto de escutar mentiras e falsidades, apontou para o Inferno e mostrou-lhe como estava a abarrotar de boas intenções. Desolado, o arauto messiânico voltou à Terra para absolver o seu benfeitor de tais pecados, mas já se ouvia no Céu um coro de injustiçados.
Entretanto, os anos passavam e a Lusilândia continuava a ser o país adiado de sempre. Órfão do fado, o povo virara-se para o futebol e lá ia sonhando com as tão famigeradas faixas de campeão europeu, que era a única coisa que podia fazer, porque a terra de Viriatorix, sob a manápula e a alçada dos Bananas, uma raça desalmada, totalmente alienada a Gutazar, estava entregue à bicharada.
E como metia dó ver o país dos eméritos marinheiros quinhentistas navegar à vista e a sobrevier à custa da injecções das lecas europeias. Por onde andarás, ó razão, que ninguém te quer ver? E a inércia ia se estendendo aos mais recônditos ermos do país e paralisando a nação que dera ao mundo a Ínclita Geração.
Nos hospitais, a saúde estava doente, porque os genéricos haviam sido traficados pelo lobo farmacêutico global que, aproveitando-se da impunidade que lhe fora concedida por um acólito de Gutazar, ia despachando para a Lusilândia os remédios inválidos, contaminando-se assim o povo, para que ele morresse de morte natural antes do tempo, para que as promessas do aumento de pensões ficassem saldadas e tais remessas pudessem ser desviadas para os invioláveis cofres suíços dos protegidos do regime.
Nas escolas, ninguém aprendia e muito menos respeitava alguém, porque os canudos, de tão desvalorizados que estavam, só serviam para acender as priscas de haxixe que os filhos dos Faustos Bananas atiravam à cara dos idiotas que haviam recusado vender a alma ao diabo! Perdão, ao Supremo Comandante Gutazar, o Homem a quem Deus incumbira de implantar a Igualdade na Terra. E para dar lições de moral ao Mundo, um Ministério fora criado na Lusilândia.
Nos pousios bravos, crescia a liamba, porque, previdente, Gutazar sabia que a mama da Senhora Europa, de tanto ser chupada, iria secar e, sem tal maná providencial, lhe faltaria o soldo para pagar os devotos correligionários, a quem tudo devia e que por um Duradouro o trocariam à menor ocasião.
Nos bancos, que também haviam caído no goto das facilidades e recorrido aos créditos alheios para satisfazer as manias e as vaidades da patuleia do regime, os empregados passavam as horas a branquear e falsificar Euros, que se tornara moeda corrente, para manter o país na moda por mais um mês, pelo menos, porque a maioria, farta de sustentar a minoria com as migalhas da subsistência, queria fazer do absolutismo, que trazia no coração, uma realidade inegociável, para por em marcha a solução final. É que, à força de tantas promessas e água benta, muito poucos eram os lusitanos que ainda resistiam às benesses envenenadas do Ministro Ateu, que, encapotado na pele do perfeito filho de deus, ia levando a água ao seu moinho para melhor triturar quem, mais não tendo, se negava a vender a alma por tuta-e-meia e aceitar de peito aberto a clonagem cor-de-rosa, unanimemente apregoada no hemiciclo pela maioria relativa, absolutamente vendida à tese do pensamento único que, segundo os profetas Gutzarianos, devia haver na Terra e nos Céus, para que todos, embora uns mais que outros, porque da primeira ou da última hora, fossem verdadeiramente filhos de Deus, como o eram certamente o Primeiro Ministro e o Presidente.
Nas igrejas, os abades, que haviam entornado a devoção e eram os mais fiéis e dedicados agentes do senhor Gutazar, por obra Santo espirito do Orelha, que, graças a uma ideia faraónica, lhes arranjara também uma providencial renda mínima garantida, passaram a incluir metodicamente nas suas preces dominicais uma oração especial a favor do benigno, generoso e magnânimo benfeitor da cristandade. E, aproveitando a ligeireza penitente, o pecado arrancou a pele à virtude e, vestindo-a, passou a ostentá-la orgulhosamente por toda a parte.
Avassalados por tanta prepotência e tamanha falsidade, os incorruptíveis começaram a fomentar a revolta, mas ninguém lhes deu ouvidos. Foi então que, desesperados, se viraram para o céu e imploraram a ajuda dos antepassados, como eles injustiçados ou ignominiosamente espoliados por Salerres, primeiro, e, agora, por Gutazar. E um coro de vozes, saltando furiosamente lá dos confins das masmorras do infinito esquecimento, se levantou para que justiça fosse feita a vivos e a mortos. E Lúcius, gladiador apocalíptico, e um dos milhares de espoliados de Abril, ouvindo falar de Artur, o menino prodígio, largou tudo, pai, mãe, mulher e filhos, para dar voz aos fantasmas sussurrantes e aos zés Ninguém seus irmãos que no far-west da Lusilândia sofriam simultaneamente as sevícias dos cow-boys Bananas e dos índios afectos a El Gutazar, o mais nobre sequaz de Salerres de má memória, a quem os sovietes de Abril quiseram riscar da história.

Terça-feira, 16 de Setembro, o país acordou indolente e triste, como a chuva que não parava de cair miúda, miudinha como as gotas invisíveis de um orvalho vítreo escorregadio. Os sinais da véspera haviam sacudido e flagelado os corações empedernidos e o corpo, envergonhado e espicaçado pela vozearia infernal que irrompia da consciência martirizada e fazia tremer os seus peitos arquejantes até à espinal medula, não ousava deixar o leito e afrontar a ira divina. E o absenteísmo quase atingiu os noventa porcento. Apenas as repartições púbicas controladas pelos filhos da sacrossanta mater Rosa abriram as portas, mas como ao fim de uma hora ninguém aí entrasse, os funcionários pensaram que a divina providência insuflara, durante a noite, ao Mui Digníssimo, Magnânimo e Excelentíssimo Senhor Gutazar mais uma benesse para exorcizar a prece das rosinhas frustradas por tanta ociosidade, mas que este, de tão atarefado que andava, nem tivera tempo de os avisar de se outorgarem mais um dia feriado e se porem a andar, porque o povo caturra teria todo o tempo de lá voltar e as mãos lhes untar. Mais, tantas vezes os incorruptos aí entrariam e tantas achegas levariam pela cabeça abaixo que um dia acabariam por abrir os olhos e aderir como toda a gente ao partido da rosa. Os chefes, esses, ou aceitavam um cheque comunitário ou iam contribuir para o novo paraíso latifundiário dos camaradas alentejanos, desbravando montes e vales por um naco de broa e chorando tantas lágrimas de desespero que até o Alqueva, conhecendo uma inopinada e transcendental maré cheia, alagaria as terras da moirama até às falésias do Algarve, acabando de vez com a infiel raça dos renegados vermelhos, antes de se atacar aos irredutíveis do norte, para quem o seu espírito maligno reservava pior sorte: uma muralha mais alta que a da China, para começar, e uma acidental explosão nuclear para acabar de vez com os insubmissos inimigos do Senhor Gutazar! É que Timor ensinara ao maquiavélico condutor que o amor do povo ia para quem mais horror criava à sua volta e para quem, sendo cristão, punha o diabo à solta. Agora, que o Poder lhe devorava a Razão, só lhe restava fomentar uma desgraça nas províncias rebeldes e provocar um genocídio regional para ser consagrado herói da Lusilândia e declarado ad vitam eternam pai da Nação.
A ver pelas sondagens estatais, não era outra coisa que o povo submisso esperava. De Norte a Sul, enquanto os Comandos de Gutazar iam semeando a discórdia e aterrorizando os idiotas do regime, as Confederações e as Ligas da Rosa acirravam a cabeça à população que lhes era afecta, extrapolando tais exacções e apelando à Sacrossanta União Nacional em torno do Prodigioso Líder, pai da prosperidade e Digníssimo Herdeiro do Espírito da Ínclita Geração, que, em menos de uma década, restaurara a imagem e fizera da Lusilândia o país encantado que todos os cidadãos do Mundo e do Infinito queriam ter como a Ditosa Pátria Mãe, mas a quem só a alma da mais pura Rosa se podia orgulhar de pisar eternamente, comungando da paradisíacas delícias de tão Nobre Raça.
Era pois este o teor dos predicados estampados na imprensa e difundidos pelas ondas hertzianas neste primeiro dia de Campanha Eleitoral. À noite, quando todos os calorosos lares da mirífica Lusitânia vissem o debate promovida pela SPQFR — a televisão da rosae veritas — a adrenalina dos seus corações infinitamente gratos só poderia exultar de alegria e tomar a única decisão que se impunha: exigir o extermínio imediato dos rebeldes e consagrar o poder vitalício do Previdente e Generoso Pai da Nação, El Más Grande Comandante, Gutazar I, Rei da Lusilândia, do Algarve, dos Açores e d’Aquém Mar em Terra e d’Além Deserto Lunar, para onde costumava viajar quando a oposição ousava contradizer a sua Sapientíssima e Omnipotentíssima verdade, sobretudo depois que aceitara ser Regente da Confraria Internacional da Rosa e Protector de Timor, lá no oriente, bem perto do sol nascente, onde a gente ainda era gente, em tudo diferente, mesmo na simplicidade e no exercício da Liberdade, como do perdão. Aqui, o povo sendeiro só se rendia ao deus Dinheiro!
A oposição só fingia que era para Europeu ver e diante da televisão, porque, no segredo da mais incógnita privacidade, passava os dias a contar as migalhas e as noites a pactuar com os emissários do 3-G, como carinhosamente lhe chamavam, em vez de pôr o dedo de uma Kalachnikov ou mesmo de uma velha G-3 e lutar até à morte, para merecerem, como os seus antepassados sacrificados e injustiçados a vida eterna, aquele que se ganha no Céu, perdendo-a na Terra, a que se conquista, oferecendo-a. A sua desdita começou no dia em que, pensando servir Timor, omitiram a verdade e recusaram pedir justiça. Poucos foram, aliás, naqueles tristes e conturbados dias, os que ousaram desafiar a sacrossanta unanimidade e pediram ao Promessas que tivesse um pouco de pudor e se fosse embora para não regar a Maioria Absoluta com o sangue do povo Maubere, mas o vírus da demoníaca vaidade e, quiçá, uma alcateia esfomeada obrigaram-no a trilhar a ignominiosa estrada da mentira e do perjúrio. E, tal Nero esquizofrénico a contemplar Roma incendiada, El Gutazar conduziu os inocentes ao Gólgotha de Liquiçá, Díli, Bacau, Bonbonaro, oferecendo-os ingenuamente em sacrifício à demência das milícias muçulmanas. Na realidade, os cálculos eleitoralistas cegaram-no de tal modo que a sua demoníaca vaidade plantou o Inferno onde a hipócrita inocência, obstruindo-lhe o juízo, quis semear o Paraíso. Depois, é verdade, chorou lágrimas de crocodilo e, invocando o Santo Nome de Timor em vão, manietou de tal maneira a oposição que ninguém mais ousou clamar justiça. E o povo ateu, pensando apenas nas lecas da União Europeia, não só o absolveu de todos os seus pecados, como lhe exigiu que levasse por diante os mirabolantes desígnios hegemónicos, já que o Duradouro, afilhado de um Pau, não tinha nem cara de Santo nem mão de gigante para distribuir as prometidas benesses pela maralha. Não admira pois que a súcia de acólitos, meia dúzia e canalha, depois de um passeio com mil promessas e juras de fidelidade pelo país acima, o traíssem mesmo à boca das urnas e o atirassem abaixo no dia da Verdade, rendendo-se e engrossando, de facto, à sondagem da tão desejada maioria absoluta, para participar no banquete e beneficiar da miragem que lhes anunciavam os estrategos de sua majestade Gutazar, o Primeiro Magnífico! E, consumada a felonia, lá voltaram ao redil do mártir Carneiro, para prosseguir a pérfida e ignominiosa traição, como os mais perfeitos, inocentes, insuspeitos e fidedignos Cavaleiros da Ordem da Rosa, traindo ignominiosamente quem lhes dera o ser e quem, outrora, os içara aos píncaros do poder. É que, na hora de agarrar o combóio, nunca se pensa se ele descarrila pelo caminho!
O primeiro grande debate da campanha eleitoral não trazia, pois, nada de novo. A indiferença geral era a prova mais cabal que algo ia muito mal no reino do Senhor Gutazar, mais virado para o socialismo global que para sua Lusilândia natal. Os líderes da Oposição, que só faziam que eram, e diante dos seus mais acérrimos perseguidores, há muito que haviam vendido a consciência à opulência sem a menor relutância, sucumbindo, como os rosinhas, à mais aviltante ganância.
Entretanto, nos mais recônditos ermos da heróica Lusilândia, muitos eram os que, nada mais possuindo, começavam a recusar o rendimento mínimo garantido, a fazer greve de fome e a interpelar os arautos sagrados à porta das igrejas, areópago do pensamento único, no despertar deste terceiro milénio, depois de o ser de Deus nos dois primeiros. Decididos a tudo, mesmo a pagar com a própria morte, muito mais digna que a vida escrava e sem sentido que eram obrigados a levar, os Infiéis, como lhe chamavam os superkids, os cow-boys, os yes-men, as call-girls e as Czarianas, as amas que El Comandante possuía por tudo quanto era ministério, a começar pelo da Igualdade, onde abundavam as amazonas e as boazonas, apelidos com que se diferenciavam as feministas, amadoras ou bem operacionais, segundo o número de zonas percorridas e o teor dos serviços prestados pelas mulheres que se destinavam a humanizar a vida e o erário públicos, porque era ponto de honra no reino pagar generosamente todos os favores que se fizessem de dia ou de noite, às escuras e às claras, mesmo aqueles que só prazer ofereciam a quem os dava.

...inciado em 2003 e publicado aqui, neste dia 03-02-2010!
Quase 7 anos depois, tudo piorou...

LMP - Luxemburgo, 03-02-2010

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